quinta-feira, 17 de abril de 2008

O violino

Nasceu um menino. Fato este que traz muita felicidade a qualquer família depois de uma longa colheita de mulheres. Ela contava vinte e dois; ele, nem isso ficou claro. De todo modo, poderia considerar a criança órfã, já que – mesmo tão pequena – carecia de carinho, neste aspecto. Não sei bem o ano, pois até a certidão do menino fora feita mais de uma vez. Joaquim, quando somou vinte, tinha uma vida social mais aceitável do que aquela que crescera. Os olhos pardos guardavam seu passado.

Crescera entre corredores de bibliotecas, não por indicação, mas pelo acolhimento que os livros lhe davam. Leu Machado, certamente, contudo a sua grande ambição era a Divina Comédia, onde imaginava que nada de engraçado iria encontrar. Por não ser tão comunicativo como os rapazes da sua idade, não tinha grandes amizades e confidentes. Arranjava estes nos lápis, papéis e, mais tarde, em telas de computador. O tio, um monge estudante de Filosofia, levou-o ao teatro para que ouvisse a música clássica.

O menino que crescia entre troares de guitarras mal tocadas, se encontrou de tal modo, como se lhe dera a chave do segredo que ele procurara. O som do impossível acorde lhe assombrou pela noite: como diria a mãe? E por que precisaria? Tinha um trabalho temporário na padaria próxima a sua casa. Todavia, o fermentar dos pães perdera o encanto depois de ver e sentir os rápidos e precisos movimentos do maestro. Desejara estar diante de toda aquela vibração.

Apesar do oboé, da flauta, do contrabaixo e do cravo, foi o violino que almejara. Imaginava incessantemente aquelas tensas cordas e o pequeno corpo apoiado no seu ombro, ressonando com os primeiros movimentos de seus largos dedos.

Passeava agora por outras linhas, atropelara um carro com sua bicicleta e teve neste episódio o braço deslocado. Estava à beira da formatura escolar, não que isso fosse algum mérito, para o garoto um tanto retardatário e sonolento nas aulas noturnas. Tinha outras ambições.

- Como tu vais ganhar dinheiro? Eu não tenho como te sustentar.

- Eu trabalho, não vou morrer por causa disso.

- E quantas horas de estudo?

- De início, umas quatro.

- Como eu vou agüentar isso, meu filho?!

O que mais assustava a mãe eram os ruídos constantes. Não tinha vizinho que não fuxicasse. Acreditavam que o garoto era surdo para ficar tanto tempo arranhando a crina de cavalo.

Os dias que sucederam Joaquim não foi ouvido, para grande surpresa da mãe: arrumara uma namorada. A menina magra de cabelos esgalhados era feia e orelhuda.

- Coitada! Tudo que eu não queria ter agora eram orelhas.

O amor não era de novela. A vida cotidiana tem dessas artimanhas que faz manter casais sóbrios por muito tempo. No ramo das finanças, era ela que matinha o aluguel. O trabalho dele numa Fundação para crianças do Oeste do Estado, não era muito rentável, mas fornecia satisfação diária a ele.

A mãe casou pela segunda vez. Tivera mais dois filhos nada artísticos, gente comum, do dia-a-dia. O padrasto negava toda ação de Joaquim, todavia a música queria ouvir:

- Toca Asa Branca – pedia rindo.

Ele tocava, o irmão mais novo ficava de olhos esbugalhados vidrado nos movimentos rápidos. Menino este que mais tarde veio a falecer de Febre Amarela. No enterro, Joaquim só conseguiu balbuciar: “adeus”.

No cartório encontrou Ferraz, eles quando moleques costumavam atirar pedra em vidraças e correr com pedaço de pau batendo no ferro dos portões. Certa vez foi Maria, a vizinha grã-fininha, que atirou a pedra fazendo uma cicatriz na bochecha esquerda de Ferraz.

- E o violino? Fiquei sabendo que você comprou um.

- É, faz tempo.

- Você dará um concerto por estes tempos?

- Não pretendo.

- Que pena! Maria estima por vê-los. – Ao que a aliança deixava transparecer, tinham casado.

Acontece que Joaquim não ficaria feliz em encontrá-los. Despediu-se do amigo e com a mãe ainda em prantos foi a casa. Depois dali vendeu o violino, prestou concurso público e assumiu o cargo de policial numa cidadezinha do interior. Porém, as sinfonias nunca o deixaram, na sua casa parecia que sempre tocava uma música ao longe. Creio eu que em 1994, Joana tivera o terceiro filho.


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1- Proposta do Professor de Literatura Brasileira IV, Demétrio Panarotto, de produção textual que tocasse Machado de Assis. Este, que aqui se apresenta, retoma
O Machete.